“Sou feito da inteira evolução da Terra; sou um microcosmo do macrocosmo. Nada há no universo que não esteja em mim. O inteiro universo está encapsulado em mim, como uma árvore numa semente. Nada há ali fora no universo que não esteja aqui, em mim. Terra, ar, fogo, água, tempo, espaço, luz, história, evolução e consciência – tudo está em mim. No primeiro instante do Big Bang eu estava lá, por isso trago em mim a inteira evolução da Terra. Também trago em mim os biliões de anos de evolução por vir. Sou o passado e o futuro. A nossa identidade não pode ser definida tão estreitamente como ao afirmar que sou inglês, indiano, cristão, muçulmano, hindu, budista, médico ou advogado. Estas identidades rajásicas são secundárias, de conveniência. A nossa identidade verdadeira ou sáttvica é cósmica, universal. Quando me torno consciente desta identidade primordial, sáttvica, posso ver então o meu verdadeiro lugar no universo e cada uma das minhas acções torna-se uma acção sáttvica, uma acção espiritual”

- Satish Kumar, Spiritual Compass, The Three Qualities of Life, Foxhole, Green Books, 2007, p.77.

“Um ser humano é parte do todo por nós chamado “universo”, uma parte limitada no tempo e no espaço. Nós experimentamo-nos, aos nossos pensamentos e sentimentos, como algo separado do resto – uma espécie de ilusão de óptica da nossa consciência. Esta ilusão é uma espécie de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos desejos pessoais e ao afecto por algumas pessoas que nos são mais próximas. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos desta prisão ampliando o nosso círculo de compreensão e de compaixão de modo a que abranja todas as criaturas vivas e o todo da Natureza na sua beleza”

- Einstein

“Na verdade, não estou seguro de que existo. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que encontrei, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei”

- Jorge Luis Borges

sábado, 31 de janeiro de 2015

Curso de Introdução à Meditação - 1 e 8 de Fevereiro - Galerias Santa Clara em Coimbra

Introdução às Cinco Famílias de Buda (conhecer o nosso padrão energético e o nosso potencial de despertar) - 31 Janeiro, 15h


Introdução às Cinco Famílias de Buda (conhecer o nosso padrão energético e o nosso potencial de despertar)

Sábado, 31 de Janeiro, 15-19h

Todas as pessoas, seres e acontecimentos são manifestações de cinco princípios, padrões ou potenciais energéticos, que os Tantras budistas designam como “famílias de Buda”: Vajra (conhecimento), Ratna (riqueza), Padma (paixão), Karma (acção) e Buda (espaço contemplativo). Associadas a diferentes elementos e emoções, estão constantemente presentes nas nossas vidas e relações com os outros, configurando o nosso estilo pessoal, a nossa perspectiva e atitude geral em termos de percepção e acção no mundo e as diferentes modalidades da nossa experiência. Constituem também o nosso potencial de desenvolvimento humano e espiritual, tendo um duplo aspecto, conforme nos fechamos ou abrimos a essas energias: neurótico e confuso, acompanhado de sofrimento; são e desperto, inspirador e libertador. Reconhecendo o nosso padrão ou padrões dominantes, bem como os que nos são complementares, podemos aprender a transformar as suas manifestações obscuras, conflituosas e distorcidas nas correspondentes formas da nossa sabedoria original, fazendo de cada situação da vida quotidiana, e em particular das mais difíceis, uma ocasião para refinar e despertar a consciência. Nesta abordagem não ignoramos, rejeitamos ou combatemos as emoções “negativas”, vendo antes como levá-las a manifestar as nossas qualidades profundas, de que elas são a manifestação desarmoniosa. O conhecimento e harmonização dos cinco padrões energéticos é também muito útil para a harmonia e o sucesso na dinâmica dos grupos, entre outros a nível familiar, associativo e empresarial.

O workshop será orientado por Paulo Borges . Tentando praticar a via do Buda desde 1983, tem orientado desde 1999 workshops, cursos e retiros de introdução teórica e prática ao budismo e à meditação. Professor de Filosofia na Universidade de Lisboa. Cofundador, ex-presidente da União Budista Portuguesa (2002-2014) e actual membro da Direcção. Cofundador e presidente do Círculo do Entre-Ser. Tradutor de textos budistas, como Estágios da Meditação, de Sua Santidade o Dalai Lama (Lisboa, Âncora Editora, 2001), o Livro Tibetano dos Mortos (Lisboa, Ésquilo, 2006) (com Rui Lopo), A Via do Bodhisattva, de Shantideva (Lisboa, Ésquilo, 2007), O Caminho da Grande Perfeição, de Patrul Rinpoche (Lisboa, Ésquilo, 2007) e O que não faz de ti um budista, de Dzongsar Jamyang Khyentse (Lua de Papel, 2009). Entre outras obras é autor de O Budismo e a Natureza da Mente ( 30com Matthieu Ricard e Carlos João Correia, Lisboa, Mundos Paralelos, 2005), de Descobrir Buda. Estudos e ensaios sobre a via do Despertar (Lisboa, Âncora Editora, 2010), de Quem é o meu Próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma consciência e uma ética globais e um novo paradigma cultural e civilizacional (Lisboa, Mahatma, 2014) e de O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral (Lisboa, Mahatma, 2015).

Comparticipação: 20,00 euros (vinte euros)
*Os participantes devem trazer papel, caneta e roupas largas e confortáveis.
Importante: uma real indisponibilidade financeira não é impeditiva da frequência do curso.
Local: União Budista Portuguesa, Av. Cinco de Outubro, n.º 122, 8.º Esq., 1050-061 Lisboa.
Contactos para inscrições: 213 634 363 (das 17h00 às 21h00);
Email: sede@uniaobudista.pt
Metro: Campo Pequeno
Autocarro: 21, 38, 44,49, 54, 56, 83, 727, 732, 738,745
http://www.uniaobudista.pt/actividades.php…

Criar Comunidade: Meditação, Refeição, Convívio


31 de Janeiro, 19h

O Círculo do Entre-Ser convida tod@s, budistas ou não, para uma prática de meditação em conjunto seguida de leitura de textos inspiradores, de diálogo e troca de experiências, de formulação de bons votos para o novo ano e de uma refeição compartilhada para a qual se pede que tragam contributos veganos / vegetarianos.

Segundo a tradição do Buda, a prática espiritual em conjunto tem mais efeito positivo e contribui para a criação e reforço de um espírito comunitário, movido pela aspiração ao bem de todos os seres. Interrogado pelo seu discípulo Ananda se a amizade espiritual não seria metade da vida sagrada, o Buda respondeu que “A amizade espiritual, a associação com amigos excelentes e sábios e as acções excelentes e sábias são toda a vida sagrada”.

Na sessão far-se-á uma breve apresentação do mais recente livro de Paulo Borges, O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral (Lisboa, Mahatma, 2015), um guia prático de meditação que propõe uma via ética e espiritual laica, aberta e transversal a religiosos de todas as religiões, ateus e agnósticos.

Entrada livre.

União Budista Portuguesa, Av. 5 de Outubro, 122 – 8º esq. – Lisboa
Telefone (depois das 17h): 213634363


Metro: Campo Pequeno.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Cristo, os cristãos e os animais


“Os cristãos, então, que fecham as suas mentes e corações para a causa do bem-estar animal e o mal que visa combater estão a ignorar o ensinamento espiritual fundamental do próprio Cristo. Eles também estão a recusar o papel no mundo para o qual Deus nos deu cérebro e moralidade - para sermos seus agentes no cuidar do mundo, no divino espírito de sabedoria e de amor. Como sabemos, os cristãos como os outros justificam o abandono da preocupação com o bem-estar animal com o facto de as necessidades humanas serem mais urgentes. Temos de insistir que o amor é indivisível. Não é "isto ou aquilo", é " isto e aquilo", porque uma sociedade que não consegue encontrar a energia moral para se preocupar com o sofrimento e a exploração animal fará pouco melhor em relação às necessidades humanas”.

- John Austin Baker (Bispo de Salisbúria), Sermão na Catedral de Salisbúria, 4 de Outubro de 1986, Dia Mundial do Animal.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Meditar na respiração: respiramos ou somos respirados?


"Findo o pequeno período de pós-meditação, entramos de novo num breve momento de meditação sem objecto, mantendo apenas a coluna bem direita. A partir daí, dirigimos a atenção para o corpo, que alinhamos de novo na postura em sete pontos, vivenciando a sua dimensão física e mental, interna e externa. Procuramos fazer sempre todos estes exercícios como se fosse a primeira vez, sem os converter num hábito, rotina ou processo automático. Na verdade é sempre a primeira e única vez que os fazemos, tal como tudo na nossa vida. Mantemos um espírito fresco, aberto e muito sensível à constante novidade de cada experiência, que é sempre irrepetível. Por muito que já tenhamos praticado ou lido sobre meditação, abdicamos de pensar que já sabemos alguma coisa e vivenciamos cada instante da experiência a partir do zero, como uma flor fresca que se abre a cada instante pela primeira vez: “espírito zen, espírito de principiante”.

Começamos por estabilizar durante uns breves momentos a atenção no corpo como um todo ou numa região apenas, como atrás descrito. Entramos então mais fundo, numa dimensão mais interna e subtil de nós mesmos, a respiração. O método mais simples consiste em respirarmos apenas como natural e espontaneamente o fazemos, sem alterar nada, e focarmos plenamente a atenção nessa experiência, embora uma parte fique livre para estar consciente da própria focalização. Procuramos sentir o ar a entrar e a sair, acompanhando-o ao longo de todo o percurso, mantendo a mente focada em todas as sensações que isso provoca. Como sempre, é uma atenção nua, que repousa no inspirar e no expirar sem comentários, sentindo tudo o que está a acontecer sem juízos, rótulos ou comparações. Mantemos a atenção no fluxo e refluxo da respiração, como uma maré que sobe e desce ao seu ritmo natural, e descontraímos totalmente, sem nenhum esforço adicional à simples manutenção do foco. Como diz um texto antigo, a mente repousa na respiração como uma borboleta numa flor, docemente, sem tensão.

Deixamos que os pensamentos, emoções e imagens venham e vão, no seu fluxo habitual, sem lhes darmos qualquer importância, procurando apenas manter a atenção na respiração, sem nos envolvermos com eles e sem acrescentar mais pensamentos àqueles que espontaneamente surgem. Se nos distrairmos com os pensamentos ou com outra coisa qualquer, como o que se passa à nossa volta, os estímulos externos, damos por isso e regressamos imediatamente à respiração, sem perdermos tempo e agitarmos a mente com juízos, comentários e autocríticas.

Ao respirar assim, plenamente atentos, entramos cada vez mais em contacto com uma dimensão de nós sã, simples e natural, livre das complicações, preocupações, problemas e sofrimentos conceptuais e emocionais da mente dominada pela ficção da separação e por tudo o que disso resulta: medo, insegurança, avidez, apego, aversão e indiferença. A respiração consciente revela-se assim um espaço de sanidade, frescura e abertura de que sempre dispomos e aonde podemos regressar a qualquer momento. Um espaço de encontro connosco próprios, mas numa dimensão de nós que, ao mesmo tempo que é mais íntima, menos fechada está em si mesma: pelo contrário, ao inspirar e expirar sentimos a evidente interconexão com a totalidade dos seres e do mundo. Na verdade a respiração é a presença em nós do fluxo da vida e atender a ela conduz-nos a sentir e descobrir a interconexão com tudo o que existe, comungando o mesmo fluxo vital universal. Inspiramos o que os outros expiram, expiramos o que os outros inspiram, não existimos nem vivemos separados e isolados, fora da comunhão e da osmose com esse fluido que envolve, banha e impregna tudo: humanos, animais, plantas, Terra, universo. Quanto mais entramos na atenção plena ao respirar, mais a percepção do corpo se aprofunda e dilata: é um corpo aberto, sem os aparentes limites da pele, um corpo que acolhe em si o mundo ao inspirar, um corpo que se entrega ao mundo ao expirar. Um corpo-mundo. Podemos mesmo questionar se somos nós que respiramos ou se não somos antes respirados... Se somos nós que respiramos ou se é o inteiro unimultiverso que nos respira... Talvez na nossa aparente expiração sejamos inspirados por tudo e na nossa aparente inspiração sejamos expirados por tudo... Sentir e reconhecer isto pode levar-nos muito longe, a um profundo despertar da consciência para além das ficções do ego, para além da ficção do ego ou do eu separado.

Se não conseguimos acompanhar todo o percurso do ar a entrar e a sair, focamos a atenção onde isso é mais evidente. Pode ser por exemplo apenas a sensação do ar a entrar e a sair pelas narinas. Se for possível acompanharmos a inspiração até ao seu limite, sentimos até onde os pulmões se enchem e a partir de onde se esvaziam. Aceitamos a respiração tal qual se processa, seja mais profunda ou mais superficial.

Terminado o período que destinámos a esta sessão, esquecemos a respiração, abandonamos todo o foco da atenção e deixamos que esta se abra completamente na meditação sem objecto ou presença aberta, ao mesmo tempo que repousamos as mãos sobre os joelhos, caso estejam uma sobre a outra. Descontraímos profundamente, física e mentalmente.

Passamos depois ao estiramento da coluna e à pós-meditação. Com a evolução da prática, podemos começar a conciliar a abertura da atenção, sem qualquer foco ou suporte, com a consciência do corpo em movimento no estiramento e na pós-meditação. É como se o corpo, ao estirar-se, fosse uma árvore que crescesse e se expandisse em pleno espaço, dele inseparável. A pós-meditação também pode começar a experimentar-se assim: estamos completamente abertos a tudo e ao mesmo tempo conscientes de cada coisa que fazemos"

- Paulo Borges, O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral, Lisboa, Edições Mahatma, 2015, pp.105-107.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A infinita riqueza e a infinita pobreza

A infinita riqueza de haver a cada instante e gratuitamente céu, terra, árvores, animais, sol, chuva, pessoas, pedras, vento, rios, mares, plantas, flores, sons, cores, texturas, sabores, odores... E a infinita pobreza de uma sociedade e civilização que não só não dá por isso e não o aprecia, como ainda o destrói com a obsessão de trabalhar e crescer para produzir e consumir mais “riqueza”!...
Tanta gente que se julga livre e passa a vida fechada na prisão dos pensamentos, preocupações, medos, expectativas e distracções sem abrir a consciência e os sentidos para o exuberante deslumbramento da Vida...
Tanta gente que corre em todas as direcções em busca do que está dentro de si e por todo o lado...

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Uma pequena introdução à meditação


Sentamo-nos, para já apenas com a coluna vertebral bem direita, numa almofada no chão, sobre um tapete, ou numa cadeira. Se possível devemos evitar encostar a coluna, a não ser que haja alguma situação física que a isso nos obrigue. Nesse caso podemos usar o apoio necessário. Se estivermos numa cadeira, os pés ficam paralelos um ao outro. Se estivermos numa almofada, sentamo-nos com as pernas cruzadas na postura mais confortável, procurando que a almofada tenha a altura suficiente para erguer a região pélvica de modo a que haja uma maior abertura das pernas e os joelhos se aproximem o mais possível do tapete. Se por enquanto os joelhos não tocam o chão, não forçamos.

Fazemos três profundas inspirações e expirações, de modo a descontrair e dissipar tensões o mais possível e estamos sentados aqui e agora, abandonando todas as preocupações com o passado, o futuro e mesmo com o presente. Sentamo-nos pela primeira vez nas nossas vidas, com uma mente fresca e aberta à experiência de estarmos aqui e agora, sem memórias, planos ou projectos. Se já lemos alguma coisa sobre meditação, incluindo as páginas anteriores deste livro, esquecemos isso agora. Se já praticámos alguma forma de meditação, também esquecemos isso. Esquecemos mesmo tudo o que habitualmente pensamos ser ou saber. Entramos num estado sem conceitos, pressupostos ou expectativas, livres da ideia de haver alguma coisa a obter, a rejeitar ou a transformar. Não há nada a fazer senão estarmos conscientes do que está a acontecer. Nada fazer senão reconhecermos o que se passa sem nada querermos transformar, é noutro sentido fazer imenso e uma profunda transformação em relação ao nosso estado habitual de inquietação e ansiedade, em que andamos sempre a fugir de alguma coisa e a correr atrás de outra.

Sentamo-nos uns momentos com a mente aberta a todo o espaço circundante e trazemos então a atenção para a experiência que estamos a ter, aqui e agora, a nível físico, emocional e mental. Sentimos tudo o que se passa em nós – sensações físicas, emoções e pensamentos - e aceitamos incondicionalmente isso como puras experiências, que não rotulamos como boas ou más, agradáveis ou desagradáveis: são apenas experiências. Estamos como estamos, reconhecemos e aceitamos isso, sem juízos, comparações ou críticas. Estamos livres do conflito inerente a sentir-nos X e achar que devíamos sentir-nos Y. Largamos os conceitos habituais de estar bem ou mal dispostos, alegres ou tristes, entusiasmados ou aborrecidos. Estamos como estamos. Estamos. E é tudo.

Como podemos facilmente constatar, ao tentarmos fazer isto, a mente tende a fugir em todas as direcções, mas ao tomar consciência disso estamos já a focá-la na experiência presente. Estarmos conscientes da agitação e da distracção é já o primeiro e precioso fruto e benefício da meditação.


- Paulo Borges, O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral (guia prático de meditação), Lisboa, Edições Mahatma, 2015, pp.92-93.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Viver de mãos abertas ou fechadas?


O que é mais simples, gratificante e natural? Viver de mãos abertas ou fechadas? É possível viver com elas sempre fechadas, a agarrar, reter, prender, acumular? As mãos do corpo, do coração e da mente. Mesmo que nunca tenhamos colocado a questão, vejamos a resposta que a nossa vida já nos está a dar. A nossa vida e a dos grupos, das nações e da humanidade. Talvez dessa resposta venha toda a nossa alegria e todo o nosso sofrimento, toda a nossa liberdade e toda a nossa escravidão, toda a nossa sabedoria e toda a nossa ignorância. Talvez dessa resposta venha toda a harmonia e toda a destruição na nossa relação com a Terra e todas as formas de vida.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A meditação ou contemplação como a plena realização de si


"Pode-se dizer que, no seu sentido mais profundo - a que conduzem, como veremos, os métodos de concentração e calma mental - , a meditação ou contemplação consiste numa experiência de reconhecimento e fruição do que verdadeiramente se é, aqui e agora, sem a interferência de interpretações, avaliações e desejos subjectivos e de preocupações com o passado, o futuro e mesmo com o presente. Libertando a mente de tudo isso, a meditação ou contemplação manifesta-se como a experiência natural de integração na natureza profunda, perfeita e primordial de tudo o que existe, em interconexão com todas as suas manifestações, todos os fenómenos e todos os seres. A experiência meditativa ou contemplativa contrasta assim com uma experiência do mundo centrada na aparente separação do sujeito ou do “eu”, na qual tudo é percepcionado, interpretado e avaliado segundo os seus medos, expectativas, desejos e
aversões, as suas supostas necessidades, os seus gostos, desgostos e apetites de ter, fazer e desfazer. É nesse sentido que tradicionalmente, segundo a chamada filosofia perene, a meditação ou contemplação se considera a suprema e mais eficaz forma de acção, por promover a mais profunda e radical de todas as transformações, a da consciência do sujeito agente, descentrando-o das suas necessidades fictícias e apetites egocêntricos, levando-o ao (re)conhecimento de si como inseparável da ou idêntico à natureza profunda e plena do real e diminuindo e abolindo assim a experiência de separação dos demais seres e do mundo como um todo. Neste processo reintegra-se uma experiência primordial e original e uma consciência não-dualista, integral e holística, uma presença aberta ilimitadamente consciente e bondosa, desvela-se à medida que se dissipa o véu da ilusória percepção de uma cisão, distância e desconexão entre cada um de nós e a natureza profunda de todos os seres e coisas, entre eu e outro, nós e eles, ser humano e mundo, sujeito e objecto. O aprofundamento desta experiência mostra-a como a plena realização de si – no sentido de abandonarmos todas as fantasias acerca de quem somos na tomada de consciência da nossa realidade profunda – e o fim supremo da existência humana, aquilo a que na verdade inconscientemente aspiramos em todos os objectos do desejo (e daí nenhum o saciar)"

- Paulo Borges, O Coração da Vida, Visão, meditação, transformação integral (guia prático de meditação), Lisboa, Mahatma, 2015.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

"A natureza é génese, Génese"


“A natureza é uma fonte de vida e toda a fonte – não apenas a vida que brota dela – tem valor. A natureza é génese, Génese”

- Holmes Rolston III, Environmental Ethics: Duties to and values in the Natural World, Filadélfia, Temple University Press, 1988, p.197.

XLIII Encontro Inter-Religioso de Meditação, 20 Janeiro, 18.30


XLIII Encontro Inter-Religioso de Meditação

20 de Janeiro - 18:30h

É com muita alegria que a União Budista Portuguesa, assumindo a sua vocação de comunhão e diálogo fraternos com as demais tradições religiosas e espirituais, também humanistas, ateias e agnósticas (à qual nos exortou Sua Santidade o Dalai Lama em 2007), acolhe mais um Encontro Inter-religioso de Meditação.

Convidamos todos os praticantes de qualquer tradição espiritual a virem viver, em profundo silêncio e quietude trans-religiosos e em total comunhão entre todos, a experiência da busca e do encontro com o mais sagrado e o mais pleno em nós e no mundo.

“Conscientes do sofrimento criado pelo fanatismo e pela intolerância, estamos decididos a não ser idólatras em relação a, ou sujeitos a, qualquer doutrina, teoria ou ideologia, mesmo as budistas”
- Thich Nhat Hanh

A recepção será feita a partir das 18:30 e a sessão iniciar-se-á às 19:00 com breves leituras de textos de cada tradição, seguindo-se 25 minutos de meditação em silêncio.

Terminaremos com a formulação das melhores aspirações de Bom Ano para todos os seres, bem como de Paz exterior e interior no mundo e entre todas as tradições espirituais e religiosas.

Av. 5 de Outubro, 122 – 8ºesq. – Lisboa (quase em frente ao Ministério da Educação)
Indicações:Metro: Campo Pequeno
Autocarro: 21, 38, 44,49, 54, 56, 83, 727, 732, 738,745
Email: sede@uniaobudista.pt
telefone: 918113021, 213 634 363, (das 17h às 21h)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Somos normais?


"Na verdade, se os relatórios científicos nos advertem que a Terra enfrenta a sexta extinção massiva da biodiversidade desde o Holoceno, a primeira por causas humanas, os relatórios da alma dizem-nos que perdemos ou esquecemos o nosso centro e a nossa meta real, pois a paz, a felicidade e a plenitude é o que mais procuramos e parece ser disso que cada vez mais nos afastamos. O estado de pré-colapso social e ecológico em que se encontra o planeta não é senão o reflexo e a projecção externa do caos e do colapso em que tantas vezes se encontram as nossas mentes, nos afazeres de mil actividades divorciadas dos ritmos naturais do corpo e da vida e perdidas num turbilhão de pensamentos, emoções e preocupações que irresistivelmente nos arrastam como folhas secas numa tempestade interior, privando-nos de toda a calma, serenidade e lucidez necessárias ao pleno florescer e frutificar de uma vida humana sã e normal. Talvez seja o momento de termos a coragem de assumir que aquilo que passa por ser normal no nosso estado mental e comportamental dominante não é senão uma “normose”, a patologia de uma normalidade que se apresenta como tal, mas que é na verdade lesiva do nosso ser e das nossas mais profundas aspirações, tornando-nos cronicamente insatisfeitos, infelizes e doentes. O conceito de “patologia da normalidade” foi também antecipado por Erich Fromm, ao considerar que, contra a perspectiva limitada de muitos psiquiatras e psicólogos, o problema da saúde mental não se limita aos indivíduos “desajustados”, estendendo-se antes ao “possível desajuste da própria cultura”, configurando uma “patologia social”, neste caso “a patologia da sociedade ocidental contemporânea”. Com efeito, do ponto de vista das possibilidades reveladas pelo que o professor Roger Walsh chama as “disciplinas da consciência” (como a meditação e a contemplação), “o nosso estado comum de consciência de vigília está severamente abaixo do óptimo”. A cultura instituída, ao normalizar estados mentais e emocionais dissonantes e patológicos, só por serem social e quantitativamente dominantes, passou a percepcionar como patológicos muitos estados de consciência mais profunda, aquilo a que Stanislav Grof chama “emergências espirituais”. Tendemos por exemplo a achar normais e salutares a competição, a ambição e a ganância, no plano pessoal, social e institucional, enquanto somos capazes de considerar sinais de fraqueza ou de falta de inteligência o amor e a compaixão, além de considerarmos psicóticas pessoas que não se sintam separadas dos outros seres e do mundo e que experimentem estados holotrópicos de consciência (com um dinamismo de aspiração à totalidade), como aqueles que surgem espontaneamente ou resultam naturalmente da prática meditativa e contemplativa regular. Há nisto também um profundo etnocentrismo, em que a única cosmovisão do mundo tida por válida é a do racionalismo materialista da civilização ocidental tecnocientífica e industrial. Se, por exemplo, uma experiência de abertura não-dual e holística da consciência, em que alguém se sinta inseparável do universo e do divino, ocorrer numa cultura oriental ou indígena, haverá um enorme respeito pelo seu sujeito e um imenso interesse social em aprender com ele e usufruir da partilha da sua vivência, considerada preciosa, ao passo que se a mesma experiência ocorrer numa sociedade ocidental ele tenderá a ocultá-la, pois se a partilhar expõe-se ao ridículo e ao gozo público de ser considerado um “místico” alucinado ou a ser hospitalizado para receber tratamento psicofarmacológico que suprima os sintomas (perturbadores não tanto para ele, mas para a estreiteza mental dominante) e o devolva à “normalidade” segundo o critério médico-psiquiátrico ainda dominante".

- Paulo Borges, O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral, Lisboa, Mahatma, 2015, pp.31-33.

"Possam todos os seres ser felizes"


“Possam todos os seres ser felizes e estar em segurança […].
Sejam quais forem os seres vivos, tanto frágeis como fortes, grandes ou compridos, de tamanho médio, baixos, pequenos ou avultados,
Visíveis ou invisíveis, vivam longe (ou) próximo, nascidos ou procurando nascer, possam todas as criaturas ser felizes.
[…]
Como uma mãe que, com risco da sua vida, cuida do seu próprio filho, do seu único filho, que todos cultivem também um espírito ilimitadamente (amigável) a respeito de todos os seres.
E que ele cultive uma boa vontade para com todo o mundo, um espírito ilimitadamente (amigável), para cima, para baixo e através, não obstruído, sem ódio, sem inimizade.
De pé, a andar, sentado ou deitado, enquanto estiver acordado, que ele se dedique a este estado de espírito; esta (forma de) vida diz-se ser a melhor neste mundo”

- Buda Gautama, Metta Sutta.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Portugal e Identidade, com Miguel Real e Paulo Borges, hoje na Ler Devagar, 21 h


Eu e o Miguel Real estaremos hoje às 21h na Livraria Ler Devagar para debater o tema "Portugal e Identidade". Há realmente uma identidade nacional ou há identificações e representações, nacionais ou outras, em constante mutação? O que é Portugal? O que pode vir a ser? Qual a vocação, o sentido e o desafio de Portugal (e da Lusofonia), no presente momento de metamorfose civilizacional? São estas algumas das questões que abordarei, em diálogo com os grandes poetas e pensadores de Portugal com os quais tenho dialogado nos meus livros: Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva. Entrada livre ( e saída também :))

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

“Para onde quer que vos volteis, aí está o rosto de Alá” - Corão, 2, 115.

“Para onde quer que vos volteis, aí está o rosto de Alá”
- Corão, 2, 115.

Nas vítimas e nos agressores, nos islâmicos e nos não-islâmicos, nos que são Charlie e nos que não são Charlie, nos que pensam X e nos que pensam Y, nos que insultam e nos que louvam, nos humanos e nos animais, nas flores e nas árvores, no vento e nas nuvens, nos rios e nos oceanos, no sol e na lua, nas pedras da calçada e nos carros que passam, na minha camisola, na tua caneta e no seu chapéu, no céu e na terra.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O que é a liberdade?


Imagem: Xenofonte

Não há verdadeira liberdade senão como libertação: dos instintos, dos hábitos, dos caprichos, do egocentrismo, do desejo de fama, poder, riqueza ou prazer, do desejo de agradar, agredir ou ofender, da indiferença. A liberdade só é livre quando se exerce com sabedoria, amor e compaixão, não só por uns, mas por todos, por todos os seres vivos. O exercício da liberdade supõe auto-contenção por critérios éticos e até estéticos. Só é livre o que é capaz de renunciar à própria liberdade por um bem superior: o bem de todos e a própria libertação. A verdadeira liberdade é aquela que é capaz de renunciar e transcender a si mesma. A liberdade só é absoluta quando não se absolutiza.

Livre não é quem diz ou faz o que lhe apetece, impelido e escravizado pelos motivos acima indicados. Livre é quem faz o que quer, mas apenas quando a vontade é movida por sabedoria, amor e compaixão, ou seja, pela consciência fraterna e activa do que é melhor fazer para o bem de todos a cada instante, em função de cada situação e circunstâncias concretas. Neste sentido só faz o que quer quem não faz o que lhe apetece e quem faz o que lhe apetece nunca faz o que quer.

O exercício consciente e ético da liberdade não se pode jamais restringir totalmente a uma moral e a uma jurisdição (por mais que estas sejam necessárias, enquanto os humanos não forem plenamente livres), pois não se pode codificar em normas positivas que sejam absoluta e formalmente válidas e aplicáveis em todas as circunstâncias diferenciadas e concretas. O exercício consciente e ético da liberdade implica a intenção e a criatividade de fazer em cada situação o melhor possível em função dos envolvidos e das consequências de cada acto – mental, verbal e físico - para o bem comum de todos os seres. Por isso e por vezes o melhor possível pode ser não fazer nada, se disso vier um maior bem para todos.

O que o exercício consciente e ético da liberdade jamais pode dispensar, seja para agir, seja para não (re)agir, é o que três sábios gregos antigos, discípulos de Sócrates – Isócrates, Xenofonte e Platão – , chamaram “enkrateia”, o poder sobre si, o autocontrole, o autodomínio. O contrário do que Aristóteles designou como “akrasia”, a ausência de poder sobre si, o descontrolo, quando se faz o que sabe e sente não ser o melhor, dominado pela busca de prazer e satisfação imediatos.

No presente debate sobre a liberdade e a liberdade de expressão, verifica-se que a sabedoria dos antigos faz muita falta à confusão e à arrogância dos (pós-)modernos.

13.1.2015

Olá! Somos os líderes mundiais


Olá! Somos os líderes mundiais. Nos nossos países e em todo o mundo promovemos as políticas terroristas que matam lentamente milhões de pessoas lançando-os para a fome e o desemprego e destroem o planeta e os seres vivos em nome da nova religião do crescimento económico a todo o custo, apenas para benefício dos bancos e das grandes corporações. Alguns de nós temos mesmo as mãos directamente sujas de sangue de jornalistas e civis inocentes. Mas não perdemos a oportunidade de uma tragédia mediática e conveniente - sim, porque dos massacres na Nigéria, em Gaza e noutros lugares não falamos - para aparecermos na fotografia a manifestar-nos contra o terrorismo e a favor da liberdade de expressão. Somos tão bons actores que alguns de nós até acreditam que o não são. Somos especialistas em criar uma atmosfera de medo e insegurança para reforçarmos o controle das populações e desviar as atenções das nossas políticas manipuladoras e opressivas. É por isso que ainda tanta gente nos dá o voto. Como se sem nós a vida não fosse possível.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Os rebanhos, os espíritos livres e a comunidade dos verdadeiros iguais


Para o meu filho Martim, que hoje cumpre 22 anos

Assisto desde há algum tempo a um fenómeno extremamente curioso. Nas portagens na auto-estrada, mesmo quando há várias vias livres ou quase livres, os automobilistas tendem a dirigir-se para as que estão mais saturadas de veículos, por vezes quase parados... O mesmo acontece nas caixas dos supermercados. Frequentemente há muitas caixas livres ou quase livres, mas as pessoas amontoam-se nas filas mais longas...

O que é que isto nos diz? A meu ver é a manifestação mais exterior de um fenómeno psicológico patente em todos os aspectos da nossa vida. O instinto gregário, a busca da segurança de pertencer a um grupo, ou, dito de forma mais prosaica, o espírito de rebanho, é muito forte na humanidade. Mesmo nesta época pós-moderna, em que todos se julgam donos e senhores das suas opiniões e ideias próprias, em que todos presumem “pensar por si”. O que não deixa de ser a confirmação desta tese, pois todos pensam o mesmo, contradizendo assim aquilo que pensam. E isto manifesta-se em tudo, sobretudo na necessidade visceral de pertencer a um grupo ou a uma tribo, com uma determinada identidade e um determinado totem, seja cultural, nacional, político ou religioso (pode ser também uma “causa”). E de o absolutizar, pois cada ego em busca de refúgio da sua fictícia solidão tem dificuldade em admitir que não pertence à Tribo verdadeira ou mais verdadeira (de cuja verdade as outras, quando muito, apenas se aproximam: a esta presunção chama-se “tolerância”). Isso deixá-lo-ia inseguro. É por isso que as tribos convivem e comunicam tão mal entre si, mesmo quando se sentam à mesma mesa do politicamente correcto. E é por isso que há tanto conflito e sangue no mundo: mental, emocional, verbal e físico.

Na verdade, pertencer a um rebanho é uma das mais arcaicas tentativas de anestesiar a angústia de existir. Uma das mais arcaicas e uma das mais frustradas. Mas a estupidez, nutrida e aguilhoada pelo próprio sofrimento que cria, é uma das mais persistentes vocações humanas.

Ser um espírito livre, que se aventura pelas veredas inexploradas e sempre abertas, é uma tarefa de cada instante e um oásis no deserto destes tempos de novas massificações e obscurantismos em que vivemos. O preço é a solidão aparente, mas que na verdade abre para a comunhão real com a comunidade dos verdadeiros iguais e com a natureza profunda dos seres e das coisas. A comunidade dos verdadeiros iguais: aquela que não nivela e uniformiza por baixo, pelas necessidades, opiniões e ideais da tribo, nem que reclama uma igualdade instituída por decreto, mas a que resulta da elevação até ao que de mais fundo e nobre existe em cada um de nós, livre de todas as carências e projectos do ego. E isso só é possível tresmalhando-nos da mediocridade de todos os rebanhos, por mais simpáticos e divertidos que sejam. É para além de todos os rebanhos que se ganha o direito a ingressar na grande comunidade e comunhão da Vida, da Vida plena.

11.1.2015

sábado, 10 de janeiro de 2015

"Procuro um verdadeiro ser humano"


A obsessão de ter razão manifesta a incapacidade de nos elevarmos à sua altura. A irritação com as ideias alheias manifesta uma enorme insegurança com as próprias. Nos tempos que correm, cultivar um diálogo sereno entre visões diferentes é uma das grandes maravilhas e raridades do mundo. Cheios de medo e cobardia, os espíritos encolhem-se para caberem nas crenças estreitas e fugazes das multidões. É a hora de, como o grego Diógenes, sair com uma lanterna acesa em pleno dia e dizer: “Procuro um verdadeiro ser humano”.

Imagem: Nemo Non, de Pieter Brueghel, O Velho (1525/1530-1569)

Mensagem dos esquecidos da história a todo o mundo e ninguém

Sou mais um doente que morreu após várias horas de espera nas Urgências de um hospital público. O meu estado era urgente, mas as Urgências não tiveram urgência em me atender. Tudo porque o Estado português e outros Estados desinvestem na saúde para investirem na protecção do grande capital.

Sou uma pensionista idosa, doente e só que se priva de comida para comprar medicamentos ou de medicamentos para comprar comida. Tudo porque o Estado português e os outros Estados estão ao serviço dos mais fortes e desprezam os mais fracos.
Sou uma vaca que vive num cubículo toda a vida a ser engravidada artificialmente para dar leite e viver o tormento da separação dos meus filhos assim que nascem. Tudo para lucro de uns poucos e prejuízo de muitos, pois cada vez mais se sabe que os lacticínios são gravemente prejudiciais à saúde humana.

Sou uma criança abandonada pelos pais em frente à televisão, a absorver violência e estupidez, porque não têm tempo para nada senão para trabalhar a fazer o que não gostam e chegam a casa cansados, stressados e sem paciência para estar comigo e muito menos para me conhecerem e compreenderem o meu mundo, que ainda resiste com o espanto e maravilha que o deles já perdeu há muito.

Somos vacas, porcos e frangos que adoramos viver, mas somos feitos crescer à pressa, como produtos industriais, em verdadeiros campos de concentração, para logo sermos abatidos e devorados. Tudo para lucro de poucos e prejuízo de muitos, pois cada vez mais se sabe que o consumo de carne é prejudicial à saúde humana e à sustentabilidade ecológica.
Sou o Vale do Tua, um ecossistema único em termos de fauna e flora, que está a ser destruído para prejuízo de muitos e lucro de poucos (EDP, bancos e construtores civis). Sou um de muitos em todo o mundo.

Sou a Terra, que com todas as suas criaturas está a ser explorada e devastada pela nova superstição do crescimento económico ilimitado. Para prejuízo de todos e lucro da minoria dos senhores do mundo.

Nós e muitos mais, tantos que não temos conta, somos as vítimas anónimas desta civilização, que tombam a cada instante que passa, esquecidas de (quase) todos. Os media nunca nos darão as primeiras páginas nem farão longas reportagens televisivas a dizer o mesmo horas a fio. Por nós os chefes de Estado, primeiros-ministros e políticos jamais participarão em grandes desfiles, nem as multidões virão para a rua. As crianças não escreverão o nosso nome nos rostos e ninguém nos acenderá velas. Não seremos tema de longos debates nos órgãos de comunicação social e ninguém colocará as nossas imagens nos perfis das redes sociais.

Seremos apenas o que desde sempre somos. Os esquecidos e espezinhados da história. As vítimas anónimas e silenciosas dos atentados que a cada instante se cometem. Seremos apenas o que desde sempre somos. A sombra e o peso da vossa consciência, caso algum dia a tenham. Pois destes atentados vocês são todos cúmplices, a começar pelo mais grave atentado de não terem consciência disto e de, assim que ela ameaça surgir, logo virarem a cara para o lado, para se distraírem com outra coisa. Sim, porque o sistema para o qual todos vocês colaboram baseia-se na cultura da falta de atenção plena ao que realmente acontece todos os dias e por isso (quase) nunca é objecto de notícia em lado algum.

Mas cuidado, porque tudo está interligado. Vocês são inseparáveis de nós e a nossa dor e o nosso tormento, mais cedo ou mais tarde, serão a vossa dor e o vosso tormento. Estas histórias nunca acabam bem. E a prova disso é já a vossa vidinha inconsciente e triste.

10.1.2015

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Não, não sou e espero nunca ser Charlie. Nem Charlie nem nenhum dos assassinos que o abateram.

Não, não sou e espero nunca ser Charlie. Nem Charlie nem nenhum dos assassinos que o abateram. Não ganho a minha vida nem uso a liberdade de expressão, o talento, o humor e o impacto mediático para promover o obscurantismo e o ódio xenófobo e anti-religioso (para mim o humor tem limites, sim, tem os limites do amor e da compaixão, pois não consigo achar piada a ofender quem quer que seja) e também não sou um bárbaro e um idiota que pretende defender a religião que acha que é a sua matando e alimentando o ódio contra ela e a consequente xenofobia.

Se sou alguém então sou todas e cada uma das vítimas anónimas e silenciosas desta civilização estúpida e cruel, pelas quais (quase) ninguém ergue a voz e sai à rua, muito menos em manifestações mediáticas, politicamente correctas e apoiadas pelos mesmos poderes instituídos e pelos media que hipocritamente promovem, estimulam e sancionam a violência em larga escala: sou todas e cada uma das vítimas do trabalho explorado e escravo que não são abatidas de imediato, porque isso não seria rentável, mas antes mortas a fogo lento em vidas esvaziadas de sentido como meras peças da engrenagem da produção e do consumo que enriquece as grandes corporações enquanto destrói os seres vivos, os ecossistemas e o património natural do planeta; sou cada um dos indígenas expulsos das suas terras para que o lucro aumente e cada um dos homens, mulheres e crianças que trabalham de sol a sol no outro lado do mundo para que os ocidentais possam ter os trapos que vestem e os fetiches electrónicos mais baratos; sou todos e cada um dos animais explorados, torturados e abatidos, em autênticos campos de concentração, para vestir e alimentar os humanos e aqueles mesmos que hipocritamente saem à rua a protestar contra a violência e a barbárie; sou a atmosfera impregnada de gases poluentes e com efeito de estufa (em grande parte vindos da indústria da carne); sou a terra envenenada por adubos e pesticidas e esventrada pelos lobbies dos combustíveis fósseis; sou todos e cada um dos oceanos, mares, lagos e rios poluídos e repletos de plástico e outro lixo da civilização industrial; sou as florestas destruídas para plantar soja para alimentar os animais que devoramos e imprimir os jornais que promovem a violência. Sou a Vida, da Terra e de todos os seres, sacrificada a cada instante e cada vez mais em nome da única verdadeira religião (ou superstição) que (quase) todos praticam e veneram, digam-se crentes ou descrentes ou de direita, centro ou esquerda: a do “crescimento” económico a todo o custo, mesmo que isso implique a destruição da qualidade de vida e do planeta para as gerações presentes e futuras de humanos e não-humanos. Sim, se sou alguma coisa, sou a Vida. Por isso não tenho tempo nem paciência para ser Charlie. Só tenho tempo e paciência para lhe desejar, a ele, aos seus colegas e aos seus assassinos, a Paz da qual, infelizmente, eles e todos nós andamos tão afastados.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A nova mentalidade inquisitorial, seja laica ou religiosa...


Só haverá paz no mundo quando a crítica radical de qualquer religião for tão aceite quanto a crítica radical da anti-religião e o diálogo inter-religioso se estender a ateus e agnósticos, sentando crentes e descrentes à mesma mesa do respeito e da compreensão mútuos. O terrorismo, a violência e a desconsideração – por palavras, imagens e actos físicos - são os mesmos, seja em nome da religião, seja em nome da irreligião. Uns não são mais aceitáveis do que os outros. De outro modo, a nova mentalidade inquisitorial, na sua versão religiosa ou laica, converte o mundo num barril de pólvora.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

"Seu grande idiota! Não vê o que faz!? Está cego!?"

Imaginemos que caminhamos na rua com as mãos cheias de sacos de compras e súbito alguém vem violentamente contra nós, nos faz cair e ficamos estatelados no chão sobre um monte de coisas partidas, entre as quais objectos valiosos e comida e líquidos que nos estragam as roupas que acabámos de comprar e de que gostamos tanto. Como nos sentiríamos e o que faríamos? Talvez nos levantássemos cheios de ira e nos precipitássemos sobre o sujeito para lhe gritar com raiva: “Seu grande idiota! Não vê o que faz!? Está cego!?”, mas, antes que nos saísse a primeira palavra dos lábios, vimos de repente que a pessoa é realmente cega e está igualmente por terra, magoada, confusa e toda suja como nós. Decerto que a nossa cólera se desvaneceria num instante e, em vez de o agredir e ofender, imediatamente o ajudaríamos a levantar, limpando-lhe a roupa e perguntando se está ferido e o que podemos fazer para o ajudar.
Qual a diferença entre esta situação imaginária e os encontrões reais da vida, os que nos dão e os que damos aos outros? Será que vemos o que fazemos? Não estamos todos cegos, de egocentrismo, desatenção, cobiça, aversão, indiferença e ansiedade? Quando compreendemos realmente que esta cegueira ou ignorância é a fonte de toda a violência, injustiça, desarmonia e sofrimento no mundo, não nos resta senão abrir as portas da compreensão e da compaixão por nós e pelos outros. Como vemos pela nossa reacção perante esta situação imaginária, temos todos o potencial para isso. Porque não o exercitamos e desenvolvemos? Não será mais interessante orientar para isso as nossas vidas, em termos individuais e colectivos, do que esbanjá-las em mil e uma tarefas fúteis?

(recriação de uma imagem e reflexão de Alan Wallace, referida por Jack Kornfield em The Wise Heart, 2009, pp.22-23)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Reflexão do primeiro dia do ano: o que realmente queremos, em termos pessoais e sociais?

Neste primeiro dia do ano creio que uma reflexão se impõe: o que realmente queremos, em termos pessoais e sociais? Queremos vidas e sociedades fundamentalmente orientadas para a produção, o consumo e o prazer fugaz, obedecendo à pressão da cultura e dos interesses económico-políticos dominantes, com todo o tremendo impacto disso na Terra, nos ecossistemas e nos seres vivos e em vidas humanas estéreis e fúteis, ou queremos vidas e sociedades empenhadas em satisfazer as necessidades básicas de todos – habitação, alimentação, saúde, educação, justiça – , no respeito pela harmonia ecológica e pelas vidas não-humanas, para tornar cada vez mais pessoas disponíveis para reconhecerem e investirem na superior necessidade da realização plena de si mesmas, desenvolvendo todas as suas potencialidades cognitivas, afectivas e criativas? Se optamos pela segunda possibilidade, temos de ver o que estamos a fazer e o que estamos realmente dispostos a fazer por isso, incluindo deixar de fazer tudo o que conduza à primeira. Fazer este exame de consciência e tomar esta decisão é um grande passo para morrer sem remorsos. Sem o remorso de ter perdido a oportunidade de estar vivo, não orientando a vida para o essencial, aquilo que lhe confere pleno sentido e sentimento de plenitude: o bem comum a todos os seres.