“Sou feito da inteira evolução da Terra; sou um microcosmo do macrocosmo. Nada há no universo que não esteja em mim. O inteiro universo está encapsulado em mim, como uma árvore numa semente. Nada há ali fora no universo que não esteja aqui, em mim. Terra, ar, fogo, água, tempo, espaço, luz, história, evolução e consciência – tudo está em mim. No primeiro instante do Big Bang eu estava lá, por isso trago em mim a inteira evolução da Terra. Também trago em mim os biliões de anos de evolução por vir. Sou o passado e o futuro. A nossa identidade não pode ser definida tão estreitamente como ao afirmar que sou inglês, indiano, cristão, muçulmano, hindu, budista, médico ou advogado. Estas identidades rajásicas são secundárias, de conveniência. A nossa identidade verdadeira ou sáttvica é cósmica, universal. Quando me torno consciente desta identidade primordial, sáttvica, posso ver então o meu verdadeiro lugar no universo e cada uma das minhas acções torna-se uma acção sáttvica, uma acção espiritual”

- Satish Kumar, Spiritual Compass, The Three Qualities of Life, Foxhole, Green Books, 2007, p.77.

“Um ser humano é parte do todo por nós chamado “universo”, uma parte limitada no tempo e no espaço. Nós experimentamo-nos, aos nossos pensamentos e sentimentos, como algo separado do resto – uma espécie de ilusão de óptica da nossa consciência. Esta ilusão é uma espécie de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos desejos pessoais e ao afecto por algumas pessoas que nos são mais próximas. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos desta prisão ampliando o nosso círculo de compreensão e de compaixão de modo a que abranja todas as criaturas vivas e o todo da Natureza na sua beleza”

- Einstein

“Na verdade, não estou seguro de que existo. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que encontrei, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei”

- Jorge Luis Borges

quarta-feira, 18 de junho de 2014

O novo ópio do povo: capitalismo, indústria do entretenimento, infantilização e narcisismo


“[…] a indústria do entretenimento – da televisão à música rock, do turismo à imprensa cor-de-rosa [não esqueçamos uma certa utilização das redes sociais, os jogos de video e o futebol] – desempenha um importante papel de pacificação social e de criação de consensos. Este facto está muito bem resumido no conceito de “tittytainment”. De que se trata? Em 1995, reuniu-se em São Francisco o primeiro “State of the World Forum”, no qual participaram cerca de quinhentas das pessoas mais poderosas do mundo (entre outros, Gorbachev, Bush júnior, Thatcher, Bill Gates…) para discutirem a seguinte questão: o que fazer no futuro com os oitenta por cento da população mundial que deixarão de ser necessários para a produção? Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro do presidente Jimmy Carter, teria então proposto como solução aquilo a que chamou “tittytainment”: às populações “supérfluas”, e potencialmente perigosas em virtude da sua frustração, seria destinada uma mistura de alimento e de entretenimento, de entertainment embrutecedor, para se obter um estado de letargia feliz semelhante à do recém-nascido que bebeu do seio (tits, em jargão americano) materno. Por outras palavras, o papel central assegurado tradicionalmente pela repressão – enquanto estratégia para evitar conflitos sociais – passa a ser em grande medida acompanhado pela infantilização (mas sem que esta substitua aquela por completo, ao contrário do que alguns parecem crer). […] Existe um isomorfismo profundo entre a indústria do entretenimento e a deriva do capitalismo para a infantilização e o narcisismo. A economia material mantém estreitos laços com as novas formas da “economia psíquica e libidinal””

- Anselm Jappe, Sobre a Balsa da Medusa. Ensaios sobre a decomposição do capitalismo, Lisboa, Antígona, 2012, pp.101-103.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Felicidade e futebol


A única felicidade autêntica é a de ser. Colocá-la na dependência de algo que se pode ter ou não, do perder ou do ganhar, é condenar-se a uma constante insegurança, frustração e sofrimento. Milhões de portugueses estão desde ontem a provar uma vez mais isso, mas não parecem dispostos a aprender. (Des)educados para a competição entre nós e os outros, (des)educados para exultar com a vitória dos “nossos” e a derrota dos outros, (des)educados para nos identificarmos com heróis de penteados e barbas exóticas e capas de revista e nos demitirmos de termos vidas heróicas, numa crescente ânsia de emoções e glórias vãs para anestesiar o profundo mal-estar psicológico e social, somos cada vez mais uma sociedade infantilizada, de costas voltadas para a sabedoria ou a sua busca (paga-se caro expulsar a filosofia dos currículos escolares e rotulá-la de “inútil” quando uma filosofia prática, um modo de vida ético-filosófico, é aquilo de que mais necessitamos). Não perceber que viver obcecado com o ganhar e o perder é ser um eterno perdedor chama-se na Índia “samsara”, mas em Português basta dizer “parvoíce”. Com ela, em Portugal ou na Alemanha, são sempre os mesmos que “ganham”: a indústria do entretenimento ao serviço do sistema (mais rentável e mais eficaz do que a repressão violenta), a máfia do futebol e a indústria da cerveja.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Dança Desperta


Vejo e sinto aquilo a que chamamos realidade, mundo ou universo (prefiro unimultiverso) como um espaço infinito, informe e multidimensional de indeterminação, consciência, energia e vida numa dança constante que assume várias formas - inseparáveis e em osmose e metamorfose constantes – às quais as culturas humanas chamam deuses, espíritos, demónios, humanos, animais, plantas, astros, rios, montanhas, pedras, objectos, etc. Esse espaço abrange tudo o que os humanos distinguem como animado e inanimado, visível e invisível, indivíduos, entes e coisas. Tomando essa distinção como real, as religiões, as filosofias e as ciências imaginam todo o tipo de ordens, estruturas e hierarquias, procurando arrumar e encerrar essa dança nos limites dos seus conceitos, palavras e imagens. Tomando essa distinção como real, os supostos indivíduos, imaginando-se separados uns dos outros e das coisas e do mundo que percepcionam, movem-se pelo medo e pelo desejo e aversão egocêntricos e praticam todo o tipo de actos mentais, verbais e físicos que geram uma imensa massa de sofrimento nos outros e em si, pois na verdade nunca estiveram desligados. Até que despertem e vejam que tudo é a dança do mesmo a tornar-se sempre outro. Até que despertem e vejam a Festa para além do drama e da tragicomédia. Até que despertem e dancem. E sejam Dança Desperta.

domingo, 15 de junho de 2014

Era uma vez uma espécie de seres vivos que se pôs a sonhar que era a única com valor intrínseco...

Era uma vez uma espécie de seres vivos que se pôs a sonhar que era a única com valor intrínseco e a dona e senhora de um planeta extremamente abundante onde viviam simplesmente e em comunidade com todas as demais espécies. Alguns dentre eles viram que era uma ideia lucrativa e organizaram em torno dela a cultura, a política, a economia e a tecnociência, prometendo a felicidade para todos os membros dessa espécie. Várias vozes protestaram, acusando a demência do projecto, mas foram abafadas pelo entusiasmo geral. E assim essa espécie usou, explorou e destruiu todos os demais seres e recursos naturais, indiferente ao sofrimento provocado e julgando que o fazia para seu próprio interesse, quando na verdade apenas servia os intuitos de uma minoria dos seus líderes político-económicos. Ao fazê-lo não percebeu que estava intimamente ligada ao que destruía e que eram as bases da sua própria existência que cortava pela raiz. A felicidade prometida obviamente não chegou e começou a surgir uma crescente insatisfação e mal-estar. Para fugirem ao incómodo refugiaram-se em todo o tipo de consumos: bebidas, comidas, substâncias legais e ilegais, objectos, emoções, trabalho, todo o tipo de distracções e uma grande euforia colectiva que os fazia esquecer tudo diante de uma bola a rolar e a cruzar uma linha branca num relvado. Um dia acordaram subitamente do sonho e viram que tinham convertido um planeta luxuriante num vasto deserto onde vagueavam sozinhos, doentes e tristes, à beira da extinção a que haviam conduzido muitas das demais espécies. Foram então acometidos de um imenso remorso e choraram lágrimas de sangue, mas nada havia já a fazer.

Se achas que esta história tem a ver contigo e não queres fazer parte dela, levanta-te do sofá e muda-lhe o fim. Os teus filhos, netos, os seres vivos e o planeta agradecem.

terça-feira, 10 de junho de 2014

O desmaio de Cavaco Silva no 10 de Junho


O desmaio de Cavaco Silva no decorrer do discurso do 10 de Junho é mais um símbolo, tal como a bandeira nacional por ele içada ao contrário no 5 de Outubro de 2012, do desmaio deste Portugal oficial "a entristecer", como disse Fernando Pessoa, mas que persiste em comemorar-se. Ao ver o filme do desmaio senti dó deste ser humano como nós preso nas garras do sistema anónimo e invisível que o promoveu e utilizou, com a sua cumplicidade, claro, mas que agora se arrasta sem saúde nem energia no exercício de uma função para a qual nunca teve perfil nem vocação, numa crescente impopularidade. Sei que muitos não concordarão imediatamente comigo, mas hoje, ao vê-lo ser retirado em braços no meio dos protestos do povo, não pude deixar de sentir por ele a mesma profunda compaixão que por todos os portugueses que tem prejudicado desde que entrou na vida política como primeiro-ministro e destruiu a economia nacional em troca de auto-estradas, serviços e subsídios da Europa agora pagos por todos nós. Porque não segue o exemplo do rei de Espanha? Porque não se retira e deixa espaço a um verdadeiro presidente que nos possa inspirar como exemplo a seguir nesta hora tão difícil? Triste apego das marionetas ao fictício poder que nunca lhes pertence..

No 10 de Junho - Um desígnio para Portugal


Muitos de nós partilhamos do mesmo sentimento de Álvaro de Campos, expresso nestes versos: “Pertenço a um género de portugueses / Que depois de estar a Índia descoberta / Ficaram sem trabalho”. Sentimos com efeito que nos falta um ideal comum e um desígnio colectivo, que faça da sociedade portuguesa mais do que uma amálgama caótica de indivíduos e grupos com interesses antagónicos em contínua disputa. Falta um desígnio e uma comunhão de princípios, valores e objectivos que congregue energias dispersas e faça de Portugal uma verdadeira comunidade. Após a fundação e expansão territorial, após a aventura marítima e o fascínio de África, do Oriente e do Brasil, com os seus ambíguos resultados, após a crescente desilusão do El Dorado europeu, sentimos cada vez mais Portugal como uma nau errante, ao sabor dos ventos e marés da economia e à mercê da pirataria financeira internacional. E o português, desenganado da política e dos políticos, à espera de um D. Sebastião que o liberte da tarefa de despertar da sua passividade, definha na “apagada e vil tristeza” de que falou Camões, sem horizonte de futuro e golpe de asa para nele se lançar, sem aquela motivação de um grande desafio ou causa que o leve a transcender-se e a dar o seu melhor, como aconteceu quando da solidariedade com Timor.

Esse desígnio e esse desafio, essa comunhão que nos devolva o sentimento de pertença a um destino comum, com princípios, valores e objectivos partilhados, não virá hoje dos canais tradicionais, em franca crise e decadência, seja o Estado, a Igreja, a família ou a escola, pesem as louváveis excepções. Tem de ser toda a sociedade, desperta pelos indivíduos, grupos e forças mais conscientes, a mobilizar-se para repensar o sentido da nossa existência colectiva e histórica como nação. Creio que, perante os desafios do nosso tempo, perante os riscos de colapso económico-financeiro, social e ecológico, o grande desígnio só pode ser o de promover uma cultura da paz e da solidariedade global e integral, que abranja o homem, os seres vivos e toda a Terra. Perante a crescente abdicação do Estado português diante da banca e da finança internacional, a sociedade civil deve organizar-se mediante uma convergência e coordenação dos movimentos e associações que cuidam o outro, seja o homem, o animal ou o planeta. Eles e todos os indivíduos movidos pelo altruísmo solidário são o que há de mais são em Portugal e só deles pode vir uma regeneração do país com o supremo desígnio do bem comum. Há que ver que todos os que se dedicam à solidariedade social, à protecção dos animais, das minorias e dos sectores mais desfavorecidos da população, à defesa das crianças, das mulheres e dos idosos, à luta contra a fome e a pobreza, à busca de alternativas espirituais, culturais, educativas, terapêuticas, económicas, ecológicas, sociais e políticas, estão a caminhar no mesmo rumo, o de uma nova civilização, mais sã, consciente, ética e justa.

É fundamental que essas pessoas, associações e movimentos, em vez de caminharem separados, dêem as mãos e concertem esforços, constituindo-se como uma ampla força social de onde saia uma nova classe política, de verdadeiros servidores do bem comum, que façam com que a política se subordine a critérios éticos e o Estado não abdique do seu dever de apoio aos mais desfavorecidos. Viveremos então novos Descobrimentos, mas desta vez no nosso território e em nós mesmos, sem violentar nem explorar ninguém. Esta nova aventura deve ser feita em companhia de todos os que, em todos os povos, nações e culturas, caminham no mesmo rumo, o da regeneração do homem, da vida e da Terra. Sem prejuízo dessa universalidade, devemos procurar estabelecer relações estratégicas com os movimentos afins nas nações lusófonas, ibéricas e mediterrânicas.

Há que comemorar no 10 de Junho não o Portugal passado, que hoje morre lentamente, mas o outro Portugal que no presente já renasce como semente alternativa que, plantada numa civilização moribunda, faz do seu cadáver o húmus do futuro.

- Paulo Borges, in "Quem é o meu próximo?", Lisboa, Mahatma, 2014, pp.146-147.

Hino Portugal dos Grandes



Neste 10 de Junho, o hino alternativo que tive o prazer de escrever em 2012, com música do Maestro António Vitorino d'Almeida:

Hino Portugal dos Grandes

Da ocidental praia lusitana
Do finisterra europeu
Da noite do mundo como breu
Da noite da era que morreu
Outro Portugal se ergue
Irmão da Terra e do Céu

Rosto atlântico voltado ao oceano
Abraço armilar ao mundo
Vida Nova te espera
Renascida do azul profundo

Portugal dos Grandes
Coração vasto e fundo
Abraça todos os seres
Cria um Novo Mundo

Tua pátria todo o planeta
Todos os povos teus irmãos
Todas as vidas tua vida
Folhas, patas, asas, mãos

Quebra todas as amarras
Abre o peito, solta a voz
Desperta deste sono
O salvador somos nós

(3x)
Portugal dos Grandes
Coração vasto e fundo
Abraça todos os seres
Cria um Novo Mundo


O hino do Portugal dos Grandes não é um novo hino para Portugal. É um hino para um Novo Portugal, de todos os que se dedicam à solidariedade social, à protecção dos animais, das minorias e dos sectores mais desfavorecidos da população, à defesa das crianças, das mulheres e dos idosos, à luta contra a fome e a pobreza, à busca de alternativas espirituais, culturais, educativas, terapêuticas, económicas, ecológicas, sociais e políticas e que estão a caminhar no mesmo rumo, o de uma nova civilização, mais sã, consciente, ética e justa.

Foi apresentado no 10 de Junho de 2012 num evento público no Coreto do Jardim da Estrela em Lisboa.

Letra: Paulo Borges
Música: Maestro António Victorino d'Almeida
Realização: Edgar Pêra

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A unidade de todos os seres no pensamento hindu (o meu artigo para a revista CAIS de Julho)



Na Índia os mais antigos hinos do Rgveda, apesar de não formularem nem implicarem “nenhum sistema doutrinal”, mostram “uma tendência para religar a um princípio unitário a multiplicidade dos fenómenos” e dos seres [1]. Diz-se assim que “todas as criaturas” se apoiam no “Uno”, que por sua vez se fixa no “umbigo do não-Nascido” [2], o imanifestado. Um outro hino considera que o sacrifício pelos deuses do purusa, um gigante antropomórfico primordial, identificado à totalidade do “universo”, é a origem de “todos os seres”, com um quarto apenas de si, enquanto os três outros quartos permanecem no domínio da imortalidade celeste. Esse quarto do purusa, termo que na filosofia Sāmkhya designa a Consciência pura, é o que se expande cosmogonicamente “em todos os sentidos, / em direcção às coisas que comem e que não comem”, alusão ao animado e ao inanimado [3]. Também Vāc, a “palavra” cosmogónica, se expande desde as “águas” originárias “através de todos os seres”, apoderando-se “de todas as existências” [4]. Já no Atharvaveda se diz que “Vena [o “vidente”] viu em segredo a (morada) suprema, / onde todas as coisas têm uma forma única” [5]. No mesmo texto se diz que “Prajāpati [o “senhor das criaturas”] entra na matriz, no interior”, onde, “sem ser visível, assume nascimentos múltiplos”, gerando “todo o universo” com a “metade” visível de si, enquanto a outra permanece imanifestada, sem “sinal distintivo” [6]. A geração do mundo é assim apresentada como a metamorfose e transmigração da sua fonte criadora na totalidade dos seres, que lhe são consubstanciais, pelo menos a respeito da sua dimensão manifestada.

Significativo é também o longo hino à Terra, ainda no Atharvaveda, que a invoca como a “Mestra do que foi e do que será”, “que sustenta de muitas maneiras o que tem sopro e movimento”, a “portadora de todas as coisas” e o “sustento” feminino que oferece repouso a “todos os seres animados”. A Terra remonta às “origens”, onde foi “uma Onda sobre os mares”, possuindo um “coração imortal” que, “coberto de Verdade, se oculta no firmamento supremo”. Dela nascidos, nela circulam os “mortais”, bípedes ou quadrúpedes. Ela é também a “mãe das plantas” e a “universal genitora”, onde habita Agni, o deus do Fogo, tal como em todos os seres por ela gerados: plantas, águas, pedras, humanos e animais. Mantenedora de todos os seres e “guardiã do mundo”, a Terra é invocada para conceder aos humanos uma vida longa, protecção, prosperidade e poder, numa aspiração a que, fazendo crescer quem a invoca, ela mesma cresça, numa comum exaltação: “queira a Terra nos fazer crescer, crescendo ela própria!”. Num dos momentos da invocação, aspira-se precisamente a que o que se extrai da terra possa “recrescer prontamente”, sem jamais se atingir os seus “pontos vitais”, o seu “coração” [7]. Estamos numa esfera de reverência e respeito religioso pela Terra, muito distante da sua objectivação, na civilização industrial contemporânea, como um suposto manancial inerte de recursos que a humanidade pode explorar ilimitadamente a seu bel-prazer.
            
Um texto que surge ainda no final do Yajurveda, embora venha a ser incluído nos Upanishads, estabelece uma já anterior identificação entre o “Uno” (ekam) - a essência universal, por vezes referido como o brahman - , com o ātman. O “Uno” está simultaneamente “dentro” e “fora” de “tudo o que existe”, sendo-lhe transcendente e imanente. É por esse motivo que “todas as essências” estão “no Si” (ātman) e este “em todas as essências”, sendo-lhes “equivalente” na medida em que “penetra tudo”. Meditar nisto liberta de toda a “vertigem” e de todo o “sofrimento” [8].
            
Também no Brihadāranyaka Upanishad se afirma que o purusa ou o brahman primordial emanam tudo de si, saindo da sua solidão unicitária [9]. Falando agora do ātman, metaforiza-se assim o modo dessa emanação:

            “Tal como uma aranha emerge [de si mesma] mediante [tecer] fios [do seu próprio corpo], tal como pequenas faúlhas se erguem de um fogo, assim também deste Si todos os sopros vitais, todos os mundos, todos os deuses e todos os seres contingentes se erguem em todas as direcções” [10].

Todos os seres e fenómenos são assim consubstanciais ao ātman: “[…] estes mundos, estes deuses, estes seres contingentes, este Tudo, nada são senão o Si!” [11]. Assim se compreende a célebre afirmação do Chāndogya Upanishad, em que um pai revela ao filho que a sua natureza profunda é a natureza profunda de todo o universo e de todas as coisas: “Esta mais subtil essência, - todo o universo a tem como o seu Si: Isso é o Real: Isso é o Si: Isso és tu [tat tvam asi], Svetaketu!” [12].
            
Do reencontro – não necessariamente por via religiosa – desta experiência de não separação entre si, o mundo e todos os seres depende hoje cada vez mais o futuro da aventura humana sobre a Terra.





[1] Louis RENOU / Jean FILLIOZAT, L’Inde Classique. Manuel des Études Indiennes, I, Paris, Librairie d’Amérique et d’Orient / Jean Maisonneuve, 1985, p.335.
[2] Cf. Rgveda, X, 82, in Hymnes Spéculatifs du Veda, traduzidos do sânscrito e anotados por Louis Renou, Paris, Gallimard, 1985, p.80.
[3] Cf. Rgveda, X, 90, in Ibid., pp.97-100.
[4] Cf. Rgveda, X, 125, in Ibid., p.124.
[5] Cf. Atharvaveda, V, II, 1, in Ibid., p.141.
[6] Cf. Atharvaveda, X, 8, in Ibid., p.167.
[7] Cf. Atharvaveda, XII, 1, in Ibid., pp.189-202.
[8] Cf. Yajurveda, Vāj. Samh. XL, in Ibid., pp.222-223
[9] Cf. Brihadāranyaka Upanishad, I, IV, 1-5 e 9-10, in R. C. ZAEHNER, Hindu Scriptures, traduzidas e editadas por R. C. Zaehner, s. l., Everyman’s Library, 1966, pp.41-42 e 44.
[10] Cf. Ibid., II, I, 20, p.53.
[11] Cf. Ibid., II, IV, 6, p.56.
[12] Cf. Chāndogya Upanishad, VI, VIII, 7, pp. 137-138.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Paulo Borges - 2/4 - Lançamento do seu livro "Quem é o meu Próximo?"



Segunda parte do lançamento do meu mais recente livro, "Quem é o Meu Próximo?" (Lisboa, Mahatma, 2014)

Que estranha e enorme demência?...

“Humano” vem do latim “humus”, que quer dizer “terra”. Como “Adão”, que vem do hebraico “adamah”, a “terra”. Que estranha e enorme demência nos leva a destruirmos cada vez mais a Terra de que somos feitos e os demais seres vivos de que somos próximos e mesmo irmãos, pois são filhos e feitos da mesma Terra que nós?